No princípio, Deus criou Adão e Eva para serem uma comunidade de adoração: ele seria o Deus deles e eles seriam o seu povo. A queda, contudo, despedaçou a comunhão deles um com o outro, assim como com Deus; uma divisão que se aprofundou ainda mais na geração seguinte, quando Caim assassinou seu irmão. A trajetória para longe de Deus iniciada pela linhagem de Caim terminou com uma comunidade de adoração falsificada em Babel (Gênesis 11). Ao mesmo tempo, uma linhagem de verdadeiros adoradores fluiu de Sete até Abrão – Abraão –, de quem Deus prometeu fazer uma grande nação e por meio de quem prometeu abençoar todas as nações da terra (Gênesis 12.1-3).
Deus prometeu a Jacó, o neto de Abraão, que faria de seus doze filhos uma harmoniosa “comunidade de povos” adoradores (Gênesis 28.3) que seria conhecida pelo seu novo nome, “Israel”. De modo significativo, a palavra hebraica usada aqui para “comunidade” é qãhãl, que a tradução grega do Antigo Testamento geralmente traduz por ekklesia, “igreja”. Esse objetivo de uma comunidade de adoração foi alcançado após o êxodo do Egito, quando o povo chegou ao Monte Sinai. Ali Deus declarou que os israelitas eram sua propriedade peculiar, um reino de sacerdotes e uma nação santa (Êxodo 19.5-6). O Senhor prometeu habitar entre eles como seu Deus (Êxodo 29.45). Mas, tão rápido como o povo se comprometeu nesse relacionamento pactual com o Senhor, eles o abandonaram. Enquanto Moisés estava no topo do monte recebendo instrução do Senhor, o povo estava ao pé do monte fabricando falsos deuses. Estava claro desde o princípio que a “nação santa” não tinha poder para viver de modo digno do seu chamado.
Os profetas descortinam para nós o resto da história de Israel: apesar da fidelidade de Deus, eles foram filhos malignos e corruptores (Isaías 1.2) e uma esposa adúltera (Oséias 1-3). Essa herança de infidelidade pertencia igualmente aos reinos do norte e do sul: Israel e Judá eram duas irmãs pervertidas da mesma família (Ezequiel 16, 23) as quais sofreriam, cada uma, a punição da destruição e do exílio (Ezequiel 4.4-6). O Senhor não poderia habitar em meio a um povo tão profano. Ele abandonou o seu escolhido lugar de habitação em Jerusalém, deixando o seu povo à mercê de seus inimigos babilônios (Ezequiel 8-11).
Contudo a destruição de Israel no exílio não poderia ser o fim da história. Porque o Senhor havia atrelado o seu nome a Israel, a nação haveria de ser restaurada a fim de que o seu nome santo não fosse profanado entre as nações (Ezequiel 20.14). As promessas feitas no Monte Sinai tinham de ser cumpridas (Jeremias 33.20-21), de modo que as duas nações de Israel e Judá seriam restauradas pelo Senhor em um corpo único, reunido, composto de todas as famílias de Israel (Jeremias 31.1) sob um único rei (Ezequiel 37.16-22). A promessa mais importante era a transformação espiritual de Israel em um novo povo, cujos corações endurecidos seriam transformados em novos corações, sob uma nova aliança (Jeremias 31.31-33), por meio de um derramar do Espírito de Deus (Ezequiel 36.22-28). O novo Israel se tornaria o servo do Senhor, uma luz para os gentios, trazendo cura para todas as nações (Isaías 42.6, 10). Contudo, o novo Israel descrito em Isaías 40 -48 continuava a ser um povo em dificuldade e fraqueza, que precisava de constante exortação à busca da obediência e de encorajamento para confiar no constante amor de Deus por eles. Para cumprir os propósitos de Deus, outro Israel, superior, era necessário, um servo que tomasse o lugar de Israel, fazendo o que Israel fora incapaz de fazer, cumprindo seu chamado de trazer luz às nações (Isaías 49.6).
Esse servo “Israel” fez-se carne na pessoa de Jesus Cristo. Desde o momento do seu nascimento, ele reencenou a história de Israel, descendo ao Egito para que pudesse ser o verdadeiro filho a quem Deus chamou do Egito (Mateus 2.15, citando Oséias 11.1). Assim como Israel passou pelo Mar Vermelho, Jesus passou pelas águas do batismo (Mateus 3) antes de ser levado para o deserto, onde enfrentou e venceu as mesmas tentações que Israel falhou em suportar (Mateus 4). No início de seu ministério, Jesus leu em alta voz Isaías 61.1-2, declarando que a Escritura havia se cumprido na presença de seus ouvintes (Lucas 4.18-19): ele era o próprio Servo sobre quem repousava o Espírito de Deus. Como o novo Israel, Jesus cumpriu perfeitamente as exigências da lei. A nova aliança que Jeremias antecipara foi estabelecida no seu sangue (Lucas 22.20). Jesus cumpriu o plano original de Deus para a santidade humana, assim encarnando pessoalmente o novo Israel que os profetas vislumbraram.
Uma vez que Jesus Cristo é ele mesmo o novo Israel, todos aqueles que são unidos a ele pela fé são também incorporados ao Israel de Deus (Gálatas 6.16). Ele é a videira verdadeira, a clássica imagem do Antigo Testamento para Israel, e nós somos seus ramos (João 15). Porque Cristo é a viva pedra angular da casa de Deus, aqueles que são unidos a ele se tornam pedras vivas naquela casa (1 Pedro 2.4-5) e podem ser descritos pela mesma terminologia que descrevia Israel no Antigo Testamento: em Cristo, nós somos “raça eleita, sacerdócio real, nação santa” (1 Pedro 2.9-10).
Ser parte desse Israel da nova aliança, portanto, não é uma questão de descender fisicamente de Abraão, mas, em vez disso, partilhar do arrependimento e da fé de Abraão (Lucas 3.8). O novo povo de Deus inclui tanto judeus como gentios (Gálatas 3.28), uma vez que ambos são enxertados na nova oliveira, Cristo/Israel (Romanos 11.17-24). Isso não significa que Deus se esqueceu das suas promessas àqueles que descendem fisicamente de Abraão (Romanos 11.1). Certamente não. Mas nem todos os que descendem fisicamente de Israel são parte do novo Israel (Romanos 9.6). A restauração de Israel prometida nos profetas é realizada à medida que o evangelho é pregado em Jerusalém e na Judéia (o reino do sul), em Samaria (o reino do norte) e até os confins da terra, assim finalmente trazendo a luz de Deus aos gentios (Atos 1.8).
No livro do Apocalipse, João ouve o povo de Deus ser descrito como um grupo de 144.000 composto das doze tribos de Israel (Apocalipse 7.4-8). Contudo, ao olhar novamente, ele descobre que o mesmo grupo era uma multidão incontável de toda tribo e nação (Apocalipse 7.9-12). A noiva do Senhor, a imagem usada no Antigo Testamento para Israel, é a Igreja, a qual um dia não mais estará maculada por seu pecado, mas estará lindamente adornada para o seu esposo (Apocalipse 21.2). Naquele dia, o propósito e o plano original de Deus para Israel – ter um povo unido e santo para pertencer a si mesmo – finalmente se cumprirão no casamento de Cristo com a sua Igreja.
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