Uma Bíblia foi deixada em algum lugar na casa de cada pessoa que lê este artigo. Talvez mais de uma. O fato de que quase todos os cristãos no Ocidente têm a sua própria Bíblia é um privilégio bem recente. Cerca dos primeiros 1.500 anos da história da igreja, as Bíblias eram bem escassas e veladas. A imprensa não havia sido inventada até meados de 1400, bem como a possibilidade de cada família cristã ter a sua própria Bíblia aconteceu muito mais tarde. A nossa liberdade de tê-las como a temos hoje foi uma das grandes conquistas da Reforma. Assim, atualmente, cada lar cristão provavelmente tem várias Bíblias, talvez mais de uma por pessoa. No entanto, com todas essas Bíblias, quanto tempo gastamos não apenas lendo, mas esperando ouvir Deus falar nelas e através delas? Cercados pela Palavra de Deus, nós raramente o ouvimos. Neste artigo, refletiremos sobre o grande privilégio que temos não só de ouvirmos a Deus falar conosco em Sua Palavra, mas também de orarmos a Palavra de Deus em resposta a ele.
O que é a Palavra de Deus? Muitas vezes, tratamos a Bíblia como um livro de histórias sobre outras pessoas. Quer percebamos ou não, temos sido influenciados por uma visão moderna (ou pós-moderna) da história. Essa visão coloca uma distância tão grande entre a época da Bíblia e o agora de nossas vidas que a Bíblia, então, parece ter perdido seu significado e relevância. É como se a Bíblia tivesse sido sufocada pela história, e sua vitalidade, para muitos, derrotada. Como a grande e velha Bíblia da família, a Palavra de Deus tem o nosso respeito, mas foi relegada ao corredor da história, onde ela foi adicionada às fotografias datadas daqueles que vieram antes de nós, cujas vozes, porém, não são mais ouvidas. Eu gostaria de sugerir que é tempo de removermos o pó, não de nossas Bíblias, mas de nossos corações e mentes, e que possamos relê-la como a voz viva do Deus vivo.
Vamos observar 2 Timóteo 3:16-17:
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.
A expressão de que a Palavra é “inspirada” (ou soprada) por Deus é digna de observação. Ela nos lembra de que Deus é um Deus que fala. Ele não simplesmente existe ou é o ser mais recluso que existe. Antes, Ele é o Deus que fala. A Bíblia reflete plenamente a fala de Deus. Ela começa e termina dessa forma, e está repleta, de capa a capa, de Deus falando com o seu povo. Primeiramente, foi por sua fala que Deus criou o mundo. Em Gênesis 1 diz repetidamente que Deus “disse… e assim se fez”. Quando Deus fala, as coisas acontecem. Ele poderia ter simplesmente criado o mundo sem falar, mesmo assim, ele falou. Não percamos de vista o fato de que sempre há um propósito por trás do falar de Deus. Esse propósito é, em última instância, a sua própria glória. Tudo o que ele faz lhe trará, por fim, glória, e tudo o que ele diz também. É por isso que, por sua fala, ele trouxe a criação à existência – para a sua própria glória.
Outra importante ligação entre a criação e o texto de 2 Timóteo 3:16-17 é a criação de Adão em Gênesis 2:7: “Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente.” É curioso ver que, no início, quando Deus criou Adão, este estava sem vida. Ele tinha um corpo, mas não havia fôlego. Ele era como os versículos de abertura de Gênesis: criação iniciada, mas não concluída. Mas isso mudou quando Deus “soprou”. Assim como Deus soprou a vida em sua criação, trazendo-a à existência por sua fala, ele soprou, pessoalmente, a vida em Adão, preenchendo-o com o sopro da vida. E assim se fez – Adão se tornou alma vivente, mas de uma forma superior ao restante da criação. Adão foi criado exclusivamente por Deus para carregar a imagem de Deus e glorificar a Deus. O homem, à imagem de Deus, glorificaria a Deus e se deleitaria em Deus de forma que transcenderiam em muito o restante da criação. Nesse sentido, ele foi criado de forma única, e inspirado de forma única.
Isso nos traz de volta à Palavra de Deus, e para 2 Timóteo 3:16-17 em particular. Este versículo nos ensina que a Palavra de Deus também foi inspirada de forma única. Ela foi “inspirada por Deus”, semelhante à criação da terra em Gênesis 1 e semelhante à criação de Adão em Gênesis 2. O objetivo principal da Palavra de Deus é glorificá-lo. Deus promete preservar a sua Palavra, pelo mesmo Espírito Santo, através do qual ele inicialmente a inspirou. Ela transcende tempo, espaço e história, porque está ligada ao Espírito de Deus, o qual não pode ser sufocado pelas areias do tempo, expulso do mundo ou mudado pelo fluxo da história. Em outras palavras, a veracidade e a relevância da Bíblia não dependem do homem e seus desígnios. A Palavra de Deus está vinculada ao próprio Deus. Portanto, o problema entre nós e a Palavra de Deus tem muito mais a ver conosco do que com a Palavra de Deus.
Se for de consolo, essa dificuldade em ouvir, compreender, acreditar e obedecer a Palavra de Deus não é nova. Os discípulos de Jesus ilustram o problema tão bem quanto qualquer pessoa, talvez até melhor. Afinal de contas, eles estiveram na presença de Jesus. Eles mesmos foram os ouvintes dessas palavras. Eles viram Jesus falar e agir. Beberam o melhor vinho que animou a muitos, comeram o pão milagroso que alimentou a milhares, viram os coxos andarem, os cegos verem, e os mortos ressuscitarem. Quem mais do que eles deveria ter acreditado? Ainda assim, quantas vezes o nosso paciente Senhor teve que suportar a incredulidade deles com relação à sua Palavra? Quantas vezes ele disse: “Homens de pequena fé”?
Neste ponto, João 20:22 chega até nós como um copo de água da vida em um vale de ossos secos. “E com isso, soprou sobre eles e disse: ‘Recebam o Espírito Santo’.” (grifo meu). Por que Jesus sopra sobre eles? Será que Jesus, o Verbo que se fez carne, aquele que soprou vida sobre a primeira criação, era agora o Filho de Deus ressurreto, que sopra vida sobre uma nova criação? Assim como soprou sobre Adão, que recebeu o espírito de vida, Jesus soprou sobre os discípulos e eles receberam o Espírito de vida eterna. Aqueles que outrora eram cegos para a verdade da Palavra de Deus, agora podiam ver. Aqueles que outrora eram surdos agora podiam ouvir. O Espírito Santo havia sido dado a seu povo, e aqueles discípulos covardes, instáveis, obstinados e perplexos (parecidos com você e eu?) finalmente compreenderam e acreditaram no que Jesus dissera a eles aquele tempo todo. Agora eles entendiam a sua cruz e o seu Reino – que aquela era o meio para este. Agora eles entendiam que a verdadeira vida só pode ser encontrada nele e que a sua vida foi entregue por eles. Agora eles entendiam que todas as histórias da Bíblia formavam o cenário para o clímax da história da morte e ressurreição de Cristo. Agora eles acreditavam e proclamavam a sua Palavra com ousadia. Eles se agarraram a ela como se fosse a própria Palavra de vida, a Palavra do Deus vivo. O que fora prometido que o Espírito realizaria neles (orientá-los a um relacionamento com a Palavra de Deus que gera vida) estava se cumprindo agora sob a nova aliança. Talvez seja por isso que Paulo vê a Palavra de Deus como apta para “preparar” o homem de Deus. A Palavra inspirada pelo Espírito é o principal instrumento pelo qual Deus continua sua obra de glorificar a Si mesmo, e Ele faz isso ao salvar e santificar homens e mulheres através dela. A Palavra de Deus não é só viva, ela gera vida (Hebreus 4:10).
A Palavra inspirada de Deus não só nos converte, ela ilumina o nosso caminho, enquanto caminhamos com Deus até o nosso lar celestial. Ela nos diz para onde estamos indo e como devemos viver enquanto peregrinamos neste mundo. Através dela, Deus fala conosco enquanto caminhamos não apenas até ele, mas também com ele. É por isso que, muitas vezes, nas Escrituras, vemos o povo de Deus orando e cantando a Palavra de Deus de volta a ele. Os Salmos estão cheios de canções e orações inspiradas pelo Espírito. Quem é melhor do que Deus em escrever canções em seu louvor e honra? Quem é melhor do que ele para nos ensinar como orar? Enquanto outras palavras possam ser usadas de forma criativa na música e na oração a Deus, certamente devemos considerar a incorporação das palavras do próprio Deus.
Quão grande privilégio consideramos ouvir Deus falando conosco em sua Palavra? A resposta está na nossa leitura, mas não apenas na leitura, na leitura atenta. Cristo promete achegar-se a nós continuamente; ele faz isso através de Sua Palavra inspirada pelo Espírito. Que possamos encontrar graça para irmos até ele através de sua Palavra e ouvi-lo enquanto ele fala.
Por R. C. Sproul. Extraído do site www.ligonier.org. © 2013 Ligonier Ministries. Original: Listening to God’s Word.Este artigo faz parte da edição de Janeiro de 2013 da revista Tabletalk sobre “As Virtudes Perdidas de Ouvir, Meditar e Pensar”.Tradução: Isabela Siqueira – © Ministério Fiel. Todos os direitos reservados. Website: www.MinisterioFiel.com.br. Original: Ouvindo a Palavra de Deus (Eric Watkins)Permissões: Você está autorizado e incentivado a reproduzir e distribuir este material em qualquer formato, desde que informe o autor, seu ministério e o tradutor, não altere o conteúdo original e não o utilize para fins comerciais.
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