“Você falou em redescobrir o evangelho”, diz nosso questionador, “e isso não significa apenas que você quer que todos nós nos tornemos calvinistas”?
Essa indagação presumivelmente gira não em torno da palavra calvinista, mas da coisa em si. Pouco importa se nos chamamos calvinistas ou não; o que importa é que compreendamos biblicamente o evangelho. Mas, isso, conforme pensamos, na realidade significa compreendê-lo conforme o tem feito o calvinismo histórico. A alternativa consiste em compreendê-lo mal e distorcê-lo. Dissemos antes que o evangelicalismo moderno, a grosso modo, tem deixado de pregar o evangelho à moda antiga; e francamente admitimos que o novo evangelho, naquilo em que se desvia do antigo, parece-nos ser uma distorção da mensagem da Bíblia. E agora podemos perceber o que tem sido erroneamente exposto. Nossa moeda teológica tem sido depreciada. Nossas mentes têm sido condicionadas a pensar sobre a cruz como uma redenção que faz menos do que redimir, e a pensar sobre Cristo como um salvador que faz menos do que salvar, e a pensar sobre a fé como a ajuda humana de que Deus necessita para cumprir os seus propósitos. Em resultado disso, não mais somos livres para acreditar no evangelho bíblico ou para anuncia-lo. Não podemos acreditar no mesmo, porque os nossos pensamentos são arrebatados nas circunvoluções do sinergismo. Somos perseguidos pela noção arminiana de que se a fé e a incredulidade tiverem de ser atos responsáveis, terão de ser atos exclusivamente humanos. E, daí deriva-se a ideia que não somos livres para crer que somos salvos inteiramente pela graça divina, através de uma fé que é dom de Deus e que chega até nós por meio do Calvário. Ao invés disso, ficamos envolvidos em uma estranha maneira de dúbio pensar, acerca da salvação, pois, em um momento, dizemos a nós mesmos, que tudo depende de Deus, para, no momento seguinte, dizermos que tudo depende de nós. A confusão mental daí resultante priva Deus de grande parte da glória que lhe deveríamos atribuir como autor e consumador da salvação, e a nós mesmos do consolo que poderíamos extrair do conhecimento daquilo que Deus fez por nós.
E então, quando passamos a pregar o evangelho, nossos falsos preconceitos nos fazem dizer exatamente o oposto daquilo que tencionávamos. Queremos (e com toda a razão) proclamar Cristo como nosso Salvador. Não obstante, terminamos dizendo que Cristo, após ter tornado possível a nossa salvação, deixou que fôssemos nossos próprios salvadores. E tudo termina dessa maneira. Queremos magnificar a graça salvadora de Deus, bem como o poder salvador de Cristo. E assim declaramos que o amor remidor de Deus abarca todos os homens, e que Cristo morreu para salvar todo homem, e proclamamos que a glória da misericórdia divina deve ser medida através desses fatos. Mas então, a fim de evitarmos o universalismo, somos forçados a depreciar tudo aquilo quanto vínhamos exaltando, passando a explicar que, afinal de contas, nada daquilo que Deus e Cristo fizeram pode salvar-nos, a menos que acrescentemos algo – o fator decisivo que realmente nos salva é o nosso próprio ato de crer. O que dizemos, portanto, resume-se nisto: Cristo salva-nos com a nossa ajuda. E o que isso significa, depois de passar pelo crivo de nosso raciocínio, é o seguinte: salvamo-nos a nós mesmos, com a ajuda de Cristo.
Esse é um anticlímax vazio de significado. Porém, se começarmos afirmando que Deus tem um amor salvífico para todos, e que Cristo morreu para salvar todos, ao mesmo tempo em que repudiamos tornarmo-nos universalistas, nada mais restará para dizermos. Portanto, sejamos claros sobre o que temos feito, após ter exposto a questão dessa maneira. Não temos exaltado a graça divina e nem a cruz de Cristo; antes, temo-las tornado baratas. Teremos limitado a expiação muito mais drasticamente do que o faz o calvinismo. Pois, ao passo que o calvinismo, assevera que a morte de Cristo salva a todos quantos foram predestinados para a salvação, teremos negado que a morte de Cristo, como tal, seja suficiente para salvar qualquer pessoa ímpios e impenitentes pecadores, ao assegurar-lhes que eles têm a capacidade de arrependerem-se a crer, embora Deus não possa dar-lhes essa capacidade. Talvez também tenhamos transformado em coisas triviais o arrependimento e a fé, a fim de tornar-se plausível essa certeza (“é tudo muito simples – apenas abra o seu coração para o Senhor…”). Por certo, teremos negado da maneira mais eficaz a soberania de Deus, além de havermos solapado a convicção básica da religião cristã – o fato que o homem está sempre nas mãos de Deus. Na verdade, teremos perdido muita coisa. Assim sendo, não admira que a nossa pregação tanto se ressinta de falta de reverência e humildade, e que os nossos professores convertidos mostrem-se tão autoconfiantes e tão deficientes quanto ao conhecimento de si mesmos, bem como nas boas obras que as Escrituras consideram fruto do verdadeiro arrependimento.
Trecho do livreto: “O Antigo Evangelho”, reeditado pela Editora Fiel em Julho de 2013
O Antigo Evangelho (J. I. Packer)
J.I.Packer apresenta neste ensaio teológico uma rica e proveitosa introdução à obra clássica de John Owen A Morte da Morte na Morte de Cristo.Ele o faz, oferecendo ao leitor uma visão sublime do Antigo Evangelho e o identifica com o calvinismo em contraste com o arminianismo, demonstrando como a robusta obra de Owen ecoa o ensino bíblico acerca da soberania de Deus na salvação do pecador.
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