Um dos principais temas do livro de Apocalipse é o paradoxo da vida cristã. Os crentes estão unidos a Cristo, o Cordeiro que foi morto mas agora reina como o Leão da tribo de Judá (Ap 5-6), e são “mais do que vencedores”, mesmo quando experimentam provação, perseguição e martírio pelo seu testemunho acerca de Jesus Cristo. G.K. Chesterton certa vez comentou que um paradoxo é “a verdade de cabeça para baixo para chamar a nossa atenção”. A descrição do reino dos crentes com Cristo por mil anos em Apocalipse 20.4-6 é um caso de tal paradoxo. Nada pode separar o crente do amor de Deus em Cristo Jesus. Mesmo diante da morte, os crentes vivem e reinam com Cristo.
Onde estão os santos que João vê?
Após descrever a prisão de Satanás nos versículos 1-3, a visão de Apocalipse 20 muda seu ângulo para focar-se em uma cena na qual o apóstolo João vê os santos, aqueles que participam da “primeira ressurreição”, reinando com Cristo durante o período do milênio:
Vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar. Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil anos. [...] Sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos. (vv. 4-6)
Há duas perguntas que são imediatamente levantadas por essa visão. Primeira, onde acontece a cena em que João tem essa visão? Essa é uma cena dos santos no céu ou dos santos na terra? Segunda, quem são os santos que João vê? Eles são a plenitude dos crentes? Eles são os crentes que morreram e agora reinam com Cristo no céu? Ou são apenas os crentes martirizados que desfrutam de um privilégio especial de reinar com Cristo como recompensa pela sua fidelidade a ele?
Ao responder a primeira pergunta, é especialmente significativo que “tronos” são a primeira coisa que o apóstolo João vê. A localização mais provável desses tronos é no céu. O céu é o lugar do trono de Deus e do Cordeiro no livro do Apocalipse. Mas também é o lugar onde os santos que morreram ou que foram martirizados participam do reino de Cristo. Em todas as referências de tronos no livro do Apocalipse (quarenta e sete casos), apenas três se referem a outro lugar que não o céu (2.13; 13.2; 16.10). Por exemplo, em Apocalipse 3.21 nós lemos essa promessa de Cristo: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono”. Se os tronos de Apocalipse 20 fossem localizados na terra, para que o reino desses santos não fossem apenas sobre, mas na terra, eles não teriam sido consistentes com o imaginário comum do livro.
Além disso, o fato do apóstolo João falar das “almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus” faz crescer a probabilidade de que a cena seja celestial. Essa linguagem faz lembrar a que foi usada anteriormente no livro do Apocalipse para descrever “as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam” (6.9). Essas almas foram vistas pelo apóstolo “debaixo do altar”, isto é, diante do trono de Deus no santuário celestial. Apesar da linguagem “almas” não revelar necessariamente que esses santos não estão mais habitando um corpo, a referência à sua decapitação sugere que esse foi o caso. Quando é observado mais adiante que esses santos são contrastados no versículo 5 com “o restante dos mortos”, torna-se cada vez mais certo que João está tendo uma visão dos santos na glória, aqueles crentes que morreram e foram trasladados à presença de Cristo no céu. O fato de que a visão mais tarde fala sobre alguns que estão sujeitos à “segunda” morte confirma, ainda, que esses são os crentes que já morreram e desfrutam a vida e a bênção diante da primeira morte da qual os incrédulos são excluídos.
É claro, deve ser admitido que a localização desses santos, quer seja no céu ou na terra, também depende do significado da sua participação na “primeira ressurreição”. Se a primeira ressurreição é uma ressurreição corpórea, como os pré-milenistas tipicamente argumentam, então parece que o reino deles é da terra e na terra. De acordo com o pré-milenismo, a visão de Apocalipse 20 é um retrato dos santos ressurretos reinando sobre a terra durante todo o período do milênio. Entretanto, a leitura natural dessa visão favorece a posição de que tais santos estão reinando com Cristo no céu, um estado intermediário subsequente à morte, mas antes da ressurreição de seus corpos.
Quem são os santos que João vê?
A resposta para a segunda pergunta — quem são esses santos? — também é polêmica. Os pré-milenistas comumente argumentam que João tem uma visão de todos os santos, crentes que chegam com Cristo à terra após o período da tribulação, e crentes que estão vivos na sua vinda, que reinam com Cristo sobre a terra por mil anos.
A maioria dos amilenistas (ou, como alguns preferem definir essa posição, “já-milenistas”) consideram que esses santos são os santos na glória, especialmente os santos martirizados. Todavia, alguns amilenistas dizem que esses santos são apenas os santos martirizados que desfrutam de um privilégio peculiar de reinar com Cristo durante o milênio. Segundo esse entendimento da visão, João está chamando a atenção ao privilégio desfrutado por santos martirizados que reinam com Cristo durante o período do milênio. De acordo com essa visão, o versículo 4 descreve um grupo limitado de crentes, aqueles que são martirizados por sua devoção a Cristo, e não todos os santos.
Contudo, há boas razões para assumirmos que os santos nessa visão incluem todos os santos no céu, especialmente, mas não apenas, os santos martirizados. Aqueles que restringem esses santos aos mártires, o fazem insistindo que o ainda na frase vi ainda as almas seja traduzida no sentido de “a saber”. Nessa tradução, o versículo deveria ser lido: “Vi também tronos, e nestes sentaram-se aqueles aos quais foi dada autoridade de julgar, a saber, as almas dos decapitados por causa do testemunho de Jesus”. Embora essa seja uma possível leitura do versículo, a versão ARA traduz de maneira apropriada quando interpreta a palavra ainda no sentido de “especialmente” antes da descrição dos mártires. De acordo com essa leitura, os privilégios desfrutados pelos santos — julgar, reinar com Cristo, não estar sujeito à segunda morte — são partilhados por todos os santos no céu. Mas os santos martirizados são separados de entre eles como beneficiários especiais desses privilégios. Longe de serem excluídos desses privilégios, o desfrutar dos santos martirizados é enfatizado. Essa leitura não apenas se encaixa bem no natural significado da palavra ainda nesse versículo, mas também é consistente com um tema que percorre todo o livro do Apocalipse: aqueles que são fiéis ao Senhor e seu testemunho são mais do que vencedores através de Cristo (veja 2.7b, 10–11, 17, 26–28; 3.11–12, 21). Ao mesmo tempo, essa leitura não exige que esses santos martirizados desfrutem de privilégios exclusivos a eles. Eles exercem julgamento, reinam com Cristo como sacerdotes, desfrutam de imunidade do poder da segunda morte — privilégios conhecidos a todos aqueles que pertencem a Cristo (Jo 12; Ef 2.6; Cl 3.1; 1 Pe 2.9–10; Ap 5.9–10).
A cena, então, que se abre diante do apóstolo João é a dos santos no céu diante do trono de Deus e do Cordeiro. Entre esses santos, João dá especial ênfase àqueles que foram decapitados e martirizados por causa de seu testemunho e fidelidade. O que ele vê é que todos eles, incluindo os santos martirizados, estão desfrutando durante o período do milênio um excepcional conjunto de privilégios — eles estão sentados sobre tronos, reinando com Cristo e servindo como sacerdotes de Deus e de Cristo. Longe de perderem a imunidade do poder da “segunda morte” — separação de Deus e de Cristo — através da morte ou do martírio, os santos na glória participam da vitória de Cristo sobre o poder da morte. Apesar da morte e do martírio, esses santos não podem ser privados da sua parte no triunfo do Cordeiro que foi morto e que é o Leão da tribo de Judá.
Tradução: Alan Cristie
Nenhum comentário:
Postar um comentário