Deus é soberano na criação, na providência, na redenção e no julgamento. Essa é uma afirmação central da crença cristã e, especialmente, da teologia Reformada. Deus é Rei e Senhor de todos. Para expressar essa verdade de outro modo: nada acontece sem que Deus deseje que aconteça, desejando-o mesmo antes que ocorra, e desejando que aconteça da maneira que ocorre. Afirmar isso parece implicar dizer que algo é expressamente “reformado” quanto à doutrina. Mas, a essência desta afirmação não é nada diferente do que diz o Credo Niceno: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso”. Dizer que Deus é soberano é expressar a sua onipotência em todas as áreas.
Deus é soberano na criação. “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1.1). Além de Deus, não havia nada. E, depois, houve algo: matéria, espaço, tempo e energia. E estes vieram a existir ex nihilo — a partir do nada. A vontade de criar foi completamente de Deus. A execução foi totalmente sua. Não havia nenhuma “necessidade” metafísica para criar; isso aconteceu por uma ação livre de Deus.
Deus é soberano na providência. O teísmo tradicional insiste que Deus é onipotente, onisciente e onipresente — todo-poderoso, todo-conhecedor e presente em todos os lugares. Cada afirmação é uma variante da soberania divina. O seu poder, conhecimento e presença asseguram que os seus objetivos sejam alcançados, que seus desígnios sejam cumpridos e que sua superintendência de todos os eventos seja (pelo menos para Deus) essencialmente “livre de risco”.
O poder de Deus não é absoluto no sentido de que Deus pode fazer qualquer coisa (potestas absoluta); antes, o poder de Deus garante que ele pode fazer tudo o que é logicamente possível para ele fazer. “Ele não pode negar a si mesmo”, por exemplo (2 Timóteo 2.13).
Algumas pessoas se opõem à ideia de que Deus conhece todos os eventos antes que ocorram. Essa visão, alguns afirmam, priva a humanidade de sua liberdade essencial. Os teístas abertos ou teístas do livre-arbítrio, por exemplo, insistem que o futuro (pelo menos em seus detalhes específicos) é de alguma forma “aberto”. Mesmo Deus não sabe tudo o que está por vir. Ele pode fazer previsões, como um “jogador de poker” cósmico, mas ele não pode conhecer de modo absoluto. Isso explica por que os teístas abertos sugerem que Deus parece mudar de mentalidade: Deus está ajustando o seu plano baseado em nova informação de eventos imprevisíveis (veja Gênesis 6.6-7; 1 Samuel 15.11). A teologia Reformada, por outro lado, insiste que nenhum evento acontece sendo uma surpresa para Deus. Para nós é “sorte ou acaso”, mas para Deus é parte do seu decreto. “A sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda decisão” (Provérbios 16.33). A linguagem da Escritura que apresenta Deus como mudando a sua mentalidade é uma adequação a nós e à nossa maneira de falar, não uma descrição de uma real mudança na mente de Deus.
Deus é soberano na redenção, um fato que explica porque somos gratos a Deus pela nossa salvação e oramos a ele pela salvação de nossos amigos que estão espiritualmente perdidos. Se o poder de salvar está no livre-arbítrio do homem, se ele realmente reside na sua capacidade de se salvar, sem que necessite de ajuda, por que imploraremos a Deus que “vivifique”, “salve” ou “regenere”? O fato de que consistentemente agradecemos a Deus pela salvação das pessoas significa (admitamos ou não) que a crença no livre-arbítrio é inconsistente.
Deus é soberano no julgamento. Poucas passagens da Escritura refletem a soberania de Deus na eleição e na reprovação com mais força do que Romanos 9.21: “Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra?”. À primeira vista, isso pode parecer injusto e arbitrário, como se Deus estivesse brincando como uma criança com as pétalas de uma flor: “Bem me quer, mal me quer, bem me quer, mal me quer”. Em resposta, algumas pessoas têm afirmado que Deus tem o direito de fazer o que lhe apraz, e não devemos criticá-lo — uma questão que o próprio Paulo antecipa (Romanos 9.20). Outros têm considerado que se Deus nos concedesse o que merecemos, todos seríamos condenados. A eleição é, portanto, um ato gracioso (e não apenas soberano). Estas duas afirmações são verdadeiras. Mas, em todo caso, nossa salvação demonstra a glória de Deus: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11.36).
Responsabilidade humana
A afirmação da soberania divina não é feita sem que mais questões devam ser abordadas.
Em primeiro lugar, há a questão da evangelização. Se Deus é soberano em todas as questões da providência, qual é o objetivo de exercer o esforço humano na evangelização e nas missões? A vontade de Deus certamente será cumprida se nós evangelizarmos ou não. Mas não ousamos raciocinar desse modo. Além do fato de que Deus nos ordena evangelizar — “Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações” (Mateus 28.19) — esse raciocínio ignora o fato de que Deus cumpre o seu plano soberano através dos meios e da instrumentalidade humanos. Em nenhuma parte da Bíblia somos encorajados a ser passivos e inertes. Paulo ordena aos seus leitores filipenses: “…desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2.12-13).
Em segundo lugar, há a questão da ética. Somos responsáveis por nossas ações e por nosso comportamento. Somos culpados pela transgressão e louváveis pela obediência.
Em terceiro lugar, em relação ao poder e à autoridade civil, há a questão da soberania de Deus na determinação dos governantes e do governo. Deus ordenou os governos civis para serem sistemas de equidade, de bem e de paz, para punição dos malfeitores e para louvor dos que fazem o bem (Romanos 13.3; 1 Pedro 2.14). Mas isso também é verdade quanto aos poderes do mal e dos regimes corruptos que violam os próprios princípios do governo em si; estes também estão sob o governo soberano do Deus Todo-Poderoso.
Em quarto lugar, quanto à questão da origem e da continuidade do mal, a soberania de Deus encontra seu problema mais sério. Que Deus não impeça que o mal exista, parece pôr em dúvida a sua onipotência ou a sua benevolência. Algumas religiões não-cristãs tentam resolver esse problema afirmando que o mal é imaginário (ciência cristã) ou uma ilusão (hinduísmo). Agostinho e muitos pensadores medievais criam que parte do mistério poderia ser resolvido identificando o mal como uma privação do bem, sugerindo que o mal é algo sem existência em si. O mal é uma questão de ontologia (existência). O pensamento Reformado sobre essa questão é resumido pela Confissão de Fé de Westminster:
Desde toda a eternidade, Deus, pelo mui sábio e santo conselho de sua própria vontade, livre e imutavelmente ordenou tudo o que venha a acontecer; ainda assim, Deus não é o autor do pecado nem é violentada a vontade das criaturas; nem a liberdade ou a contingência das causas secundárias são removidas, antes são estabelecidas (3.1).
Deus é a “causa primária” de todas as coisas, porém o mal é produto de “causas secundárias”. Nas palavras de João Calvino: “Primeiramente, deve ser observado que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas que acontecem no mundo; e ainda assim, Deus não é o autor do mal”, ele acrescenta, “pois, a causa imediata é uma coisa, e a causa remota é outra”. Em outras palavras, Deus não pode fazer o mal e não pode ser culpado pelo mal, embora este seja parte de seu decreto soberano.
Deus é soberano, e em sua soberania ele manifesta a sua majestosa glória. Sem isso, não teríamos nenhuma existência, nenhuma salvação e nenhuma esperança. Soli Deo Gloria.
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